2.2 Integrais duplos e triplos - parte 3

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Como veremos mais em baixo, para a extensão da integração dupla a regiões do plano mais gerais do que rectângulos, é importante a consideração de funções integrandas que possam ser descontínuas em subconjuntos que se possam desprezar do ponto de vista da integração dupla (do mesmo modo que um número finito de pontos se pode desprezar na integração simples). Para já, começamos por dar um sentido preciso a esta ideia de conjuntos que se podem desprezar:

Definição de conjunto de conteúdo nulo

Diz-se que um conjunto $A \subset \mathbb{R}^2$ tem conteúdo nulo se, para qualquer $\varepsilon > 0$, existir uma família finita de rectângulos (do tipo dos que se consideraram anteriormente) cuja união contenha $A$ e cujas áreas somem um número menor do que $\varepsilon$.

Por outras palavras, para que um subconjunto do plano tenha conteúdo nulo, é necessário (e suficiente) ser possível cobri-lo por uniões de rectângulos com áreas totais arbitrariamente pequenas.

É fácil reconhecer que qualquer união finita de pontos do plano tem conteúdo nulo, que a união de um número finito de conjuntos de conteúdo nulo herda a mesma propriedade, assim como qualquer subconjunto de um que tenha conteúdo nulo. E que qualquer segmento de recta tem conteúdo nulo. Qualquer destes conjuntos se pode desprezar na integração, como segue, em particular, da propriedade que a seguir apenas enunciamos:

Proposição (sobre a irrelevância de conjuntos de conteúdo nulo na integração)

Sejam $f, g: [a,b] \times [c,d] \to \mathbb{R}$ tais que $f$ é integrável e $g$ é limitada. Se $f$ e $g$ diferem apenas num conjunto de conteúdo nulo, então $g$ também é integrável e o seu integral é igual ao de $f$.

A proposição que se segue dá-nos um critério de integrabilidade que relaxa a exigência de continuidade considerada numa proposição anterior1.

Proposição (sobre a integrabilidade e o integral de funções com descontinuidades)

Seja $f : [a,b] \times [c,d] \to \mathbb{R}$ limitada. Se o conjunto de pontos de descontinuidade de $f$ tiver conteúdo nulo, então $f$ é integrável.

A ideia para se estender a integração a conjuntos mais gerais do que rectângulos é a seguinte:

Seja $D$ um domínio plano e limitado de uma função real limitada $f$ que se pretende integrar. Seja $R = [a,b] \times [c,d]$ um rectângulo que contenha $D$. Considere-se uma nova função, $\tilde{f}$, definida por

(1)
\begin{align} \tilde{f}(x,y) : = \left\{ \begin{array}{ll} f(x,y) & \mbox{ se }\, (x,y) \in D \\ 0 & \mbox{ se }\, (x,y) \in R \setminus D \end{array} \right.. \end{align}

Ou seja, $\tilde{f}$ estende $f$ por 0 a todo o $R$, i.e., atribuindo-lhe o valor zero fora de $D$.

Definições de integral e de função integrável, revisitadas

A função limitada $f : D \subset \mathbb{R}^2 \to \mathbb{R}$ diz-se integrável (em $D$) se $\tilde{f}$ for integrável (em $R$). Nesse caso, define-se ainda

(2)
\begin{align} \int\!\!\!\int_D f := \int\!\!\!\int_R \tilde{f}. \end{align}

Sai facilmente por aplicação sucessiva da aditividade do integral (e do facto de o integral da função nula ser zero) que esta definição é independente do rectângulo $R \supset D$ que se considere.

Precisamos, agora, de um critério que permita o reconhecimento fácil da integrabilidade de certas funções. Por exemplo, de funções $f : D \subset \mathbb{R}^2 \to \mathbb{R}$ limitadas e contínuas. No entanto, a proposição, anteriormente referida2, sobre integrabilidade de funções contínuas, não é aqui em geral aplicável, pois o processo de construção de $\tilde{f}$ a partir de $f$ pode introduzir descontinuidades na função auxiliar $\tilde{f}$.

O seguinte resultado, que também apenas se enuncia, vem aqui em nosso auxílio, como veremos logo a seguir:

Proposição (sobre gráficos de conteúdo nulo)

Se $\phi : [a,b] \to \mathbb{R}$ é contínua, o seu gráfico tem conteúdo nulo.

Definições de regiões de tipo I e de tipo II

(a) Uma região (ou domínio) de tipo I é um conjunto da forma

(3)
\begin{align} \{ (x,y)\in \mathbb{R}^2 : x \in [a,b]\, \wedge \, y \in [\varphi_1(x),\varphi_2(x)] \}, \end{align}

onde $\varphi_1, \varphi_2 : [a,b] \to \mathbb{R}$ são funções contínuas tais que $\varphi_1 \leq \varphi_2$ (i.e., a desigualdade vale quando as funções são aplicadas a cada um dos pontos de $[a,b]$).

(b) Uma região (ou domínio) de tipo II é um conjunto da forma

(4)
\begin{align} \{ (x,y)\in \mathbb{R}^2 : y \in [c,d]\, \wedge \, x \in [\psi_1(y),\psi_2(y)] \}, \end{align}

onde $\psi_1, \psi_2 : [c,d] \to \mathbb{R}$ são funções contínuas tais que $\psi_1 \leq \psi_2$ (i.e., a desigualdade vale quando as funções são aplicadas a cada um dos pontos de $[c,d]$).

Em baixo necessitaremos de considerar os interiores dos conjuntos (3) e (4). Trata-se, obvia e respectivamente, dos conjuntos

(5)
\begin{align} \{ (x,y)\in \mathbb{R}^2 : x \in ]a,b[\, \wedge \, y \in ]\varphi_1(x),\varphi_2(x)[ \} \quad \mbox{ e } \quad \{ (x,y)\in \mathbb{R}^2 : y \in ]c,d[\, \wedge \, x \in ]\psi_1(y),\psi_2(y)[ \}. \end{align}

Proposição (Teorema de Fubini, revisitado)

Seja $f : D \to \mathbb{R}$ uma função limitada tal que $f$ é contínua em ${\rm int\,} D$.
Se $D$ é a região de tipo I em cima considerada, então o integral de $f$ sobre $D$ existe e pode ser calculado por

(6)
\begin{align} \int\!\!\!\int_D f = \int_a^b \Big( \int_{\varphi_1(x)}^{\varphi_2(x)} f(x,y) \, dy \Big) \, dx. \end{align}

Se $D$ é a região de tipo II em cima considerada, então o integral de $f$ sobre $D$ existe e pode ser calculado por

(7)
\begin{align} \int\!\!\!\int_D f = \int_c^d \Big( \int_{\psi_1(y)}^{\psi_2(y)} f(x,y) \, dx \Big) \, dy. \end{align}

Se $D$ for simultaneamente de tipo I e de tipo II, então o integral de $f$ sobre $D$ não só existe como pode ser calculado por qualquer um dos processos (6) ou (7).

A proposição anterior é imediatamente aplicável a funções que sejam contínuas (em todo o $D$, região de tipo I ou de tipo II), já que é sabido que tais funções são automaticamente limitadas.


Seguir para a parte 4 ou adicionar um comentário em baixo.

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