2.1 Continuidade de funções de várias variáveis - parte 3

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Embora, como vimos anteriormente, a redução a coordenadas no domínio não seja possível para o cálculo do limite, podemos, tal como no caso de funções de variável real, fazer a redução ao cálculo dos limites das funções coordenadas, a exemplo do que foi feito no capítulo 1. Obviamente, as funções coordenadas definem-se aqui tal como 1, com as devidas adaptações naturais.

Proposição (limite nas funções coordenadas)

Seja $f = (f_1, \ldots, f_m) : D \subset \mathbb{R}^n \to \mathbb{R}^m$. Verifica-se que $\lim_{x \to a} f(x) = (b_1, \ldots, b_m)$ se e só se $\lim_{x \to a} f_i(x) = b_i$ para todo o $i=1, \ldots, m$.

Exercício

Sejam $f,g :D \subset \mathbb{R}^n \to \mathbb{R}^m$ e $a$ um ponto de acumulação de $D$. Mostre que a seguinte identidade se verifica, partindo do princípio que existem os limites do segundo membro:

(2)
\begin{align} \lim_{x \to a} (f \cdot g)(x) = \lim_{x \to a} f(x) \cdot \lim_{x \to a} g(x). \end{align}

A proposição anterior permite, portanto, a redução do cálculo do limite de funções vectoriais ao cálculo do limite de funções reais. Aliás, de um outro ponto de vista esta possibilidade já era clara, pois da definição4 sai também que

(4)
\begin{align} \lim_{x \to a} f(x) =b \; \mbox{ se e só se } \; \lim_{x \to a} \| f(x) - b \| = 0. \end{align}

Como, no entanto, em qualquer dos casos estamos a lidar com funções de várias variáveis, precisamos de alguns resultados adicionais antes de podermos começar a calcular limites de forma expedita neste novo contexto. Os primeiros que queremos referir aqui com esse propósito deixamo-los como exercício. São muito simples, mas não deixa de ser importante enunciá-los.

Exercício

Seja $x=(x_1, \ldots, x_n)$ o vector das $n$ variáveis de $\mathbb{R}^n$. Sejam $a=(a_1, \ldots, a_n)$ e $b=(b_1, \ldots, b_m)$ pontos dados em $\mathbb{R}^n$ e $\mathbb{R}^m$, respectivamente. Mostre que

  1. $\lim_{x \to a} b = b$;
  2. $\lim_{x \to a} x = a$;
  3. $\lim_{x \to a} x_i = a_i$, qualquer que seja o $i=1, \ldots, n$.

Proposição (infinitésimos, desigualdades e limites)

Sejam $f,g,h : D \subset \mathbb{R}^n \to \mathbb{R}$ e $a$ um ponto de acumulação de $D$.

  1. (infinitésimos) Se $\lim_{x \to a} f(x) = 0$ e $g$ é limitada (i.e., $\exists c>0 : \forall x \in D, |g(x)|\leq c$), então $\lim_{x \to a} (fg)(x) = 0$.
  2. (enquadramento) Se $g(x) \leq f(x) \leq h(x), \forall x \in D$, e se $\lim_{x \to a} g(x) = b = \lim_{x \to a} h(x)$, então também $\lim_{x \to a} f(x) = b$.
  3. (ordem) Se $g(x) \leq f(x), \forall x \in D$, então $\lim_{x \to a} g(x) \leq \lim_{x \to a} f(x)$, desde que estes limites existam.

Exercício

Calcule, caso exista, $\lim_{(x,y)\to (0,0)} (e^{x+y},\sin(x+y),x^2\sin(1/x))$.

Naturalmente, nem sempre existe o limite de uma função num ponto, tal como é o caso no primeiro exemplo da parte 2. Tal como aí, uma das técnicas para mostrar que um limite não existe é mostrar que se obtêm valores distintos quando o cálculo do limite se restringe a diferentes subconjuntos do domínio. Explicaremos em baixo com mais pormenor o que pretendemos dizer com esta frase. Precisamos, contudo, primeiro de enunciar uma definição e estabelecer uma proposição:

Definição de limite segundo um subconjunto do domínio

Seja $a \in \mathbb{R}^n$ ponto de acumulação tanto do domínio de uma função $f : D \subset \mathbb{R}^n \to \mathbb{R}^m$ como de um subconjunto $A$ desse domínio. Seja $b \in \mathbb{R}^m$. Diz-se que o limite de $f(x)$ quando $x$ tende para $a$ restrito a $A$ é $b$, e escreve-se

(6)
\begin{align} \lim_{{x \to a} \atop {x \in A}} f(x) = b, \end{align}

se $\lim_{x \to a} f|_A(x) = b$, onde $f|_A$ designa a restrição de $f$ a $A$ (i.e., a aplicação que difere de $f$ apenas pelo facto de o domínio ser $A$ em vez de $D$).

Em vez de $x \in A$ em (6) também se pode usar qualquer outra condição que lhe seja equivalente.

Proposição (limite nas restrições)

Seja $a \in \mathbb{R}^n$ ponto de acumulação tanto do domínio de uma função $f : D \subset \mathbb{R}^n \to \mathbb{R}^m$ como de cada um de um nº finito $p$ de subconjuntos $A_1, \ldots, A_p$ de $D$. Suponhamos que $D = \cup_{i=1}^p A_i$ e seja $b \in \mathbb{R}^m$. Então

(7)
\begin{align} \lim_{x \to a} f(x) = b\; \mbox{ se e só se }\; \lim_{{x \to a} \atop {x \in A_i}} f(x) = b, \forall i=1, \ldots,p. \end{align}

A prova é um simples exercício com quantificadores, por isso deixa-se ao cuidado do leitor.

Esta proposição tem duas consequências práticas. Uma delas é que a tarefa de calcular um limite pode ser dividida por um número finito de sub-tarefas, nomeadamente o cálculo dos limites restritos a um número finito de subconjuntos do domínio cuja união seja esse domínio. O limite (digamos, global) existirá se existirem e forem iguais esses limites restritos, sendo o limite global igual ao valor comum destes últimos. A segunda consequência prática é que basta que dois desses limites restritos sejam diferentes (ou que um não exista) para que não exista o limite global.

Exercício

Calcule, caso exista, $\lim_{(x,y) \to (0,0)} xy/(x^2+y^2)$.

Tenha em mente que o plugin no segundo exemplo da parte 1 pode ser útil para decidir se deve tentar mostrar que um limite existe ou se deve, ao invés, tentar mostrar que não existe: pode substituir a expressão da função usada nesse plugin por outra e observar o comportamento do respectivo gráfico junto do ponto de acumulação em que estiver interessado; a figura pode até sugerir-lhe quais restrições deve tomar para provar que o limite não existe, se for o caso.


Seguir para a parte 4 ou adicionar um comentário em baixo.

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